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É urgente estudar o Brasil

  • Foto do escritor: Sessão de Psi
    Sessão de Psi
  • 19 de ago.
  • 4 min de leitura

Estou finalizando uma pós-graduação em Psicanálise e Relações de Gênero (pelo IPPERG) e me deparei com uma lição inesperada. Ao contrário de estudar mais e mais psicanálise e autores do campo das relações de gênero (não deixarei de fazê-lo), o que mais pareceu-me urgente é estudar (e viver) o Brasil. Na disciplina “Psicanálise na encruzilhada dos saberes e a travessia do atlântico”, ministrada pelo Dr. José Damico, enalteceu-se a dimensão do quanto a Psicanálise (acrescento aqui as outras abordagens psicológicas) precisa reconhecer o Brasil. Dizer isso significa que, em certa medida, a sociedade europeia não é a maior, nem a mais antiga e nem a mais importante. Ou seja, a “cosmologia moderna ocidental” é apenas parcial na composição da sociedade brasileira. O Brasil é recheado de outras cosmologias, principalmente ao que se refere às expressões afrodiaspóricas e dos povos originários. 


Mas o que isso envolve? O que tem a ver com terapia e psicologia? Se a psicanálise parte do princípio do encontro dos inconscientes entre analista/analisando é preciso atentar-se para a dimensão colonizada deste. Mas como escutar e reconhecer tal inconsciente colonizado? É possível descolonizar o inconsciente? O que isso tem a ver com a noção de identidade? É possível pensar na construção de uma clínica racializada sem levar em conta tais questões?


“A perspectiva colonizadora, que apreende a realidade brasileira, a partir de conceitos forjados em outras terras, tem sido prática corriqueira no meio intelectual branco quando o tema é política identitária. Por outro lado, adotar tal termo sem uma análise histórica de sua função política na modernidade seria um equívoco que os movimentos minoritários correm o risco de cometer. Identidades nacionais e identidades minoritárias corresponderiam à um mesmo processo de produção de subjetividade? Qual seria a fixidez identitária e homogeneizante que há entre os terreiros de Candomblé, os terreiros de Tambor de Mina no Maranhão e os terreiros de Batuque no Rio Grande do Sul? Do mesmo modo podemos nos perguntar que fixidez é possível estabelecer entre as tantas rodas de jongo, as rodas de samba, os sambas de roda e as rodas do Baiana System? Entre as diferentes rodas de capoeira angola e as diferentes rodas de capoeira regional? Entre os distintos quilombos urbanos e os distintos quilombos rurais?” (Souza; Damico; David, 2020, p.2).

Historizar as teorias que nos orientam e localizá-las geopoliticamente deveria ser parte obrigatória de quem se propõe ao ofício da escuta psicológica. Em outra disciplina, “Colonialidade e psicanálise: a aquilombação da clínica psicanalítica”, ministrada pelo Dr. Emiliano de Camargo David (USP), foi apresentado o dispositivo de aquilombação enquanto práxis. Segundo este professor, o quilombo nesta perspectiva se apresentaria como uma outra lógica, como uma metáfora de liberdade para os corpos que assumiram posição de objeto na lógica colonial. Também diz respeito à crítica da separação mente e corpo, à qual é uma ideia profundamente colonial. 


Parece que não há outra maneira, é urgente. Parte dessa discussão também convoca-nos à pensar que não estudar o Brasil é algo que faz manutenção ao pacto da branquitude, conceito desenvolvido por Cida Bento. Quando digo estudar é mais do que é isso. Talvez tenha mais a ver com viver, só estudar não garante nada. Para finalizar este texto-convite, deixo aqui as palavras de Antônio Bispo dos Santos, em “A terra dá, a terra quer”, para questionarmos inclusive a própria noção de cultura:


“A arte é conversa das almas porque vai do indivíduo para o comunitarismo, pois ela é compartilhada. A cultura é o contrário. Nós não temos cultura, nós temos modos – modos de ver, de sentir, de fazer as coisas, modos de vida. E os modos podem ser modificados. Quando a gira está rolando num terreiro e alguém puxa um ponto, todo mundo canta junto. Colocamos uma toada, compartilhamos essa toada e cada um vai com a letra. É assim que fazemos. Dentro da cultura é preciso se submeter às notas. A cultura é uma coisa padronizada, mercantilizada, colonial. Os colonialistas dizem que não temos cultura quando não nos comportamos do jeito deles. Quem não sabe tocar piano ou não sabe o que é música erudita, quem nunca frequentou um teatro, quem não frequenta o cinema, para eles, não tem cultura. Para nós, quem não sabe dançar e cantar no batuque, quem não sabe fazer uma comida, quem não se emociona com a cantiga de um pássaro não tem um modo agradável de viver” (p.22). 
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Indicações de leituras:


  • Antônio Bispo dos Santos – “A terra dá, a terra quer”

  • Paul Gilroy – “O Atlântico Negro”

  • Cida Bento – “Pacto da Branquitude”

  • Rita Segato – “Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda”

  • Abdias do Nascimento – “O quilombismo”

  • Mariléia de Almeida – “Devir Quilombo”

  • Darcy Ribeiro - "O povo brasileiro: a formação e o sentido do rasil"



Referência ao artigo utilizado:

SOUZA, Tadeu de Paula; DAMICO, José Geraldo; DAVID, Emiliano de Camargo. Paradoxos das políticas identitárias: (des)racialização como estratégia quilombista do comum. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, v. 42, e56465, 2020. 



Por Maria Caroline Ofsiany

06.145073

 
 
 

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Elaborado por Sessão de Psi 2023

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