top of page

O amor nos tempos do heteropessimismo

  • Foto do escritor: Sessão de Psi
    Sessão de Psi
  • 5 de set.
  • 3 min de leitura

Atualizado: há 6 dias

Vale tanto quebrar a cabeça para não quebrar a cara?


Será que ainda vale a pena acreditar que é possível ser feliz com um homem hétero? Ou o peso do patriarcado já desgastou essa promessa?

O chamado heteropessimismo descreve o seguinte fenômeno: mulheres heterossexuais que não apenas desconfiam da possibilidade de viver relações satisfatórias, mas que chegam a uma espécie de desesperança na relação amorosa com homens. Não se trata de um pessimismo individual, fruto de decepções amorosas particulares. Como lembra a colunista Manuela Cantuária em O problema não é você (Folha de S. Paulo, 2024), o nó está em reconhecer que o problema não está em cada mulher isolada, mas no machismo estrutural que atravessa a vida íntima. 

Nessa coluna, Manuela lista uma série de frustrações amorosas que se traduzem em alguns estrangeirismos de língua inglesa, como: ghosting (“o perdido”, “chá de sumiço”, love bombing (demonstrações exageradas de afeto com o intuito final apenas da conquista pela conquista), orbiting (alguém que está na “órbita” mas não se envolve necessariamente com você), breadcrumbing  (migalhas de afeto), benching (ser tratada como segunda opção, deixada no “banco de reserva”), catfishing (ser enganada por alguém que não é quem diz ser nas redes sociais), situationship (relacionamento que parece um namoro mas não é) e dating burnout (sensação de esgotamento após muitas tentativas frustradas de encontrar um parceiro). Esses estrangeirismos são novas tentativas de nomeação de velhos comportamentos engrendrados desde o patriarcado. O que parece um novo glossário amoroso na verdade é a identificação da maneira como homens tratam suas companheiras na intimidade. 

Em meio a tantas desgraças amorosas é possível ser feliz num relacionamento com um homem? Em que medida o heteropessimismo é inevitável e em que medida ele é superável? A superação do patriarcado e do machismo como algo estrutural é uma luta coletiva e deve estar em sintonia com diversos movimentos políticos e sociais. Os efeitos possíveis do heteropessimismo estão associados a sensação constante de desesperança, desconfiança, ameaçada e medo de se relacionar. Se sentir assim pode trazer como consequência ao que chamamos em psicologia de “restrição experiencial”, ou seja, comportamentos evasivos, de fuga/esquiva de situações, neste caso específico a evitação de se relacionar com alguém, por um medo, que, embora legítimo, é extremamente restritivo das vivências afetivas. Jogar o bebê junto com a água do banho.

 A consciência sobre o glossário aqui exposto pode ser útil no preciso sentido de apresentação da realidade, como ela é, e como se tornou o que é e, mais importante que isso apontar o seu vir-a-ser, conceito central na psicologia histórico-cultural (PHC). Parte da seguinte ideia: se a realidade não é estática nem natural, como ela pode ser diferente? Que processos ela exige para essa transformação? A consciência dessa realidade nos dá mais ferramentas anti-romantizações e idealizações no exercício do se relacionar. Para muitas mulheres, em especial as heterossexuais, o relacionamento passa a ocupar o centro das atenções de sua vida, em vários âmbitos: emocional, existencial, identitário. Confunde-se o seu próprio existir como existir sendo mulher e esposa, namorada, companheira de alguém. Enquanto para homens-cis-hétero o relacionamento não ofusca aspirações pessoais, ao contrário. Sabendo disso, talvez possamos construir outros sentidos para além da relação romântica. Fazendo isso, se o encontro amoroso fracassar, que nós possamos sair mais inteiras dessas relações. 


Caminhos possíveis

Do ponto de vista clínico e social, o heteropessimismo nos convoca a reconhecer as dores que vêm não só das experiências privadas, mas de contradições sociais mais amplas. A saída não é oferecer “técnicas” para que cada mulher “aguente mais” ou “faça melhor”, mas abrir espaços de consciência crítica e elaboração coletiva. É perguntar, como sugere Cantuária: será que não é hora de parar de culpar as mulheres pelas ruínas do amor hétero e começar a interrogar os próprios alicerces desse modelo?


E, se a psicologia histórico-cultural nos ensina que novas formas de subjetividade podem ser produzidas a partir de novas práticas sociais, então o desafio está lançado: quais práticas de amor, cuidado e parceria podem emergir quando os papéis sociais formulados a partir do patriarcado começam a ser recusados?


Por Letícia Ribeiro

CRP 06.149429


ree

 
 
 

Comentários


Siga-nos nas redes sociais:

  • Facebook - Círculo Branco
  • Instagram - White Circle
Logo (6).png

CNPJ: 48.967.689/0001-54

Elaborado por Sessão de Psi 2023

bottom of page