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Como fui ensinada a amar?

  • Foto do escritor: Sessão de Psi
    Sessão de Psi
  • 2 de abr.
  • 5 min de leitura

Inquietações a partir da não monogamia


O convite desse texto é revisitar a nossa história e gerar questionamentos, estranhamentos e inquietações. Um convite para resgatar memórias e vivências do nosso campo relacional, que engloba todas as pessoas que construímos o que nomeamos como “vínculos afetivos”.


Desse modo, de saída, estamos considerando o convite para além das relações afetivo-sexuais. Existem por aí uma série de ideias que são associadas a não-monogamia: novidade/moda; desculpa para os homens transarem sem culpa; falta de responsabilidade; bagunça; liberdade/libertinagem; prazer; falta de compromisso e seriedade; falta de limites; não saber lidar com a falta; imaturidade ou maturidade; fase; passageiro; tentativa de consertar a relação monogâmica; não amar de verdade; pessoas frias que não sentem ciúmes.


O que será que essas ideias tem a ver com a forma como fomos ensinados a nos relacionar?


Um primeiro ponto é que não pretendemos sustentar a conversa enquanto “certo ou errado”, “melhor ou pior”, com isso propõe-se que não pensaremos a partir de uma lógica binária, “ou isso ou aquilo". Isso também pode estar em aquilo e vice-versa. Dito isso, esclarece-se que contradição aqui é bem vinda! Dessa maneira, não partiremos de uma noção de monogamia pura, em essência e nem em não monogamia como um modelo, um molde a ser reproduzido e representado. Não há como dizer de uma sem dizer da outra e é simplista pensarmos em uma enquanto mera “inversão” ou o “contrário” da outra. Não há como debater não monogamia sem operar a partir das intersecções de gênero, raça, classe e orientação sexual que se localizam de forma histórica, política e geográfica. Nessa medida, não pretende-se alavancar inquietações em uma posição de exterioridade ao debate, mas se considerar enquanto sujeito dessa análise.


Quem é você que lê?


No meu caso, minha fala se localiza enquanto mulher cis, branca, classe média, bissexual e com vivências na não monogamia. E enquanto sujeito de análise sou convidada a esbarrar nas minhas próprias contradições, privilégios, expectativas e fantasias que se relacionam com meus desejos, com a maneira como aprendi a amar e ser amada pelo meu entorno e como o molde “monogâmico” chegou até a mim. Brigitte Vasallo, professora e ativista antirracista, feminista e LGBTI espanhola, tem uma passagem em que explicita que: “A monogamia não é uma prática: é um sistema, uma forma de pensamento. É uma superestrutura que determina aquilo que chamamos de “vida privada”, as práticas sexo-afetivas, as relações amorosas. O sistema monogâmico dita como, quando, para quem e de que maneira amar e desejar, assim como quais circunstâncias são motivo para sentir tristeza, em quais deveríamos sentir raiva, o que nos machuca e o que não machuca. O sistema monogâmico é um sistema que distribui privilégios a partir dos vínculos afetivos e um sistema que organização desses vínculos” (p.38). Parece-lhes um pouco assustador pensar que o sistema monogâmico, alimentado pelas construções dos papéis de gênero, pode organizar e influenciar até a maneira como significamos nossos afetos?


A exclusividade sexual, como condição para a monogamia, sustenta o que chamamos de hierarquia das relações (um tipo de relação ter atribuição de mais importante do que as outras). A representação hegemônica do imaginário social de um “casal” quem é? Será por acaso que são pessoas cisgêneras, brancas e heterossexuais quem são estampados nos filmes românticos ou como protagonistas das novelas? Quem entra e quem fica de fora? Quem pode ou consegue ser casal com quem? Dessa maneira, parece que a identidade de gênero, a raça, a orientação sexual e a questão da classe socioeconômica, são marcadores de poder que organizam a lógica do funcionamento do sistema monogâmico, aqui considerado em sua macroestrutura.

Nesse molde há aqueles que estão aptos a serem incluídos e os que já não tem esses critérios (de privilégio) de saída. Dessa forma, a sociedade faz uma leitura que confere maior

credibilidade e legitimidade de casal quando este se enquadra dentro d heteronormatividade. É para esse tipo de relação que a sociedade se organiza, até em sua própria arquitetura… Assim, temos uma produção de legitimidade para algumas relações e para outras não.


Mas, e a hierarquia das relações como fica?


O casal seria o topo hierárquico dos vínculos afetivos, depois os filhos desse casal em uma ideia de continuidade, seguido dos vínculos consanguíneos fora desse núcleo central e por último, as amizades. O modo como sofremos e amamos parece estar circunscrito a essa pirâmide que traduz o poder inscrito nessas relações, ou seja, não se “encaixar” de alguma forma no topo dessa hierarquia gera repercussões nas vivências singulares de cada um e aqui cada intersecção pode gerar atravessamentos muito distintos, inclusive se houverem concomitâncias nesses marcadores. A discrepância de poder que existe entre homens e mulheres nas relações afetivo-sexuais não é novidade nenhuma, historicamente sabemos o quanto a regra da exclusividade sexual na monogamia nunca se sustentou, dessa maneira, criou-se um nome para isso, “traição”. A traição é naturalizada quando se trata do gênero masculino e radicalmente atacada quando é realizada pelas mulheres. Quando o casal monogâmico decide ter um filho, os papéis sociais desempenhados pela mulher são invisibilizados em detrimento da marcação de uma função principal, “ser mãe”, o que não acontece com o homem, que também supõe- se desempenhar uma função paterna.


Acho que a pergunta que se faz é: o que a monogamia enquanto sistema “justifica” a manutenção da opressão das mulheres?


Por muito tempo foi impensável pela sociedade a possibilidade de parentalidade em outros formatos para além do comercial de margarina, hoje não é mais tanto assim. Entretanto, percebemos que existe uma pressão social para que os modelos possíveis estejam enquadrados ao máximo em uma normatividade. Mas, seria, então, possível pensar em parentalidade em arranjos não monogâmicos? À primeira vista, para muitos pode parecer estranho, mas queremos levantar aqui também sobre o modo de cuidado dos filhos, cada vez menos coletivos e concentrados nas figuras que compõem o “casal”. Outro ponto que nos convoca a pensar são as marcações de saída de filhos que não são fruto do casal hegêmonico, advindo das traições (“os bastardos”) ou o não reconhecimento da paternidade, o lugar que “falta” no documento da identidade. De saída a subjetividade de quem nasce com essa marcação é atravessada. Por falar nessa primeira infância, no livro “Tudo sobre o amor, novas perspectivas”, Bell Hooks elenca sobre as “lições de amor na infância”. Neste capítulo, a autora enuncia que nosso lar é a primeira escola do amor e que ele não estará presente se os adultos que se tornaram pais não souberem a amar, discutindo sobre a confusão que se faz com amor e punição/abuso, a segunda sendo justificada pela primeira. A criança tomada enquanto “propriedade” nos inclina a pensar também nas relações e na confusão que se perpetua em alguns formatos de vínculos.


Mas e aí, o que seria importante considerar nesse debate para nós psicólogos e para quem escolhe um terapeute?


1. Não considerar a monogamia como um sistema natural e universal, que é base para uma escuta crítica em que se questiona os papéis de gênero e os vínculos afetivos.


2. Ter uma escuta, independente da abordagem psicológica, em que gênero seja um dos operadores conceituais, possibilitando que as intersecções sejam consideradas.


3. Acolher o sofrimento advindo desse sistema patriarcal sem culpabilizar o sujeito pelo seu sintoma e sim na potência do que pode se produzir a partir dele. Assim, o sintoma é tomado como produção social, circunscrito a um sistema que ensina o que podemos sentir e o que é errado. O lado errado produz culpa e essa culpa não é individual. O que é singular na culpa é a amarração que o sujeito faz e pode fazer naquele momento do processo.


Referências:

Vassalo, B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. São Paulo: Elefante, 2022.

Hooks, B. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante, 2021.



Por Maria Caroline Ofsiany

CRP 06.145073

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Elaborado por Sessão de Psi 2023

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