Subjetividade contemporânea e o campo da psicanálise
- Sessão de Psi
- 16 de abr.
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Não há como negar a progressiva consolidação de uma “cultura psicanalítica”. Essa cultura se expressa na presença, cada vez mais forte, de uma certa lógica do pensamento, de um código para as emoções e de um modo de falar próprios à psicanálise e que permeia progressivamente a esfera social.
Duplo movimento: A difusão da psicanálise funciona como instrumento de ampliação do psicologismo como matriz de interpretação da realidade pessoal e social, do mesmo modo que o viés psicologizante passa a influir de volta sobre o próprio campo psicanalítico, fenômeno que pode ser detectado na modificação do perfil da clientela, por exemplo.
Uma das proposições polêmicas com as quais a psicanálise vem lidando é aquela que a descreve como mais uma das técnicas de análise do psiquismo. A psicanálise vista por esse prisma estaria longe de ser a peste subversiva, a inovação surpreendente, a reviravolta. Restaria a ela apenas o papel de prática sofisticada de auto-exame, técnica de autoconhecimento que afirma e corrobora uma certa modalidade histórica de viver a subjetividade.
Se é no início da era cristã que a concepção moderna de sujeito encontra seus primeiros vestígios, é somente na época moderna que ela passa do plano da reflexão e das práticas restristas a se impregnar progressivamente na cultura e no tecido social, tornando-se uma categoria central na esfera dos discursos e saberes, habitando cada vez mais a consciência dos indivíduos e também servindo de alavanca para a criação de práticas coletivas, de representações sobre o papel da sociedade, do Estado, da religião, etc. É nesse mundo moderno que se criam as condições sociais que levam o sujeito a se pensar e a se sentir como indivíduo. É nele que essa configuração particular de ser humano se “naturaliza”.
Uma das características principais das sociedades ocidentais hoje é a produção de uma subjetividade individuada, desse modo específico de viver a experiência subjetiva, que se torna progressivamente naturalizada na consciência dos indivíduos. A forma pela qual se estruturam as sociedades modernas implica a produção de uma determinada maneira de os indivíduos organizarem simbolicamente sua experiência subjetiva, caracterizada por uma consicência psicológica do eu. As formas de estruturação da sociedade, nesse sentido, compreendem não apenas o âmbito da organização das relações sociais voltadas para a produção e distribuição de bens materiais, mas também a dimensão da produção discursiva sobre os homens, sua natureza e suas relações em sociedade.
Berger (1980) sugere a existência de uma certa “afinidade eletiva” entre a teoria psicanalítica e a natureza humana tal como ela é percebida nessas sociedades. Em primeiro lugar destaca-se a questão da heteronomia, pois em nenhum outro modelo de sociedade é tão típica a sensação de estar regido por leis transcedentes, impessoais, estranhas à razão e a perplexidade do indivíduo frente às forças determinantes de sua vida é experimentada quer no plano mais amplo da vida social quer na esfera de sua vida pessoal. A segunda observação a ser feita é a aproximação entre a importância social fundamental da esfera privada da existência na construção da identidades e os papéis cruciais concedidos à infância e ao tema da sexualidade na psicanálise. Um terceiro elemento de afinidade surge na existência de procedimentos científicos para a superação da perplexidade do sujeito frente às forças que o governam.
Se de um lado a psicanálise seria impensável longe dos conceitos de individualização, autonomia, representação, racionalismo, etc, por outro ela só revela sua originalidade na ruptura com estes mesmos alicerces do mundo atual. Eles fazem parte, num certo sentido, das condições de possibilidade da psicanálise. Mas os conceitos centrais da psicanálise mantêm com esses alicerces uma relação do tipo peculiar, posto que se apoiam nessas condições para dar origem a registros diferentes, a uma ordem conceitual inovadora, fora da qual seu pleno significado é inapreensível.

Por Bartira Ramos
CRP 06/143526
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