A arte de viver o instante – notas sobre o filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders
- Sessão de Psi
- 25 de jul.
- 3 min de leitura
Atualizado: 6 de ago.
Num domingo qualquer, marcado pela preguiça e pelo tédio, escolho assistir um filme que me parece bem tranquilo, guiado apenas pela imagem serena do personagem na capa e por seu título: “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders. Sem grandes pretensões, mergulho em uma narrativa que, aos poucos, me cativa pela simplicidade.
Acompanhamos a vida de Hirayama (Koji Yakusho), um homem de meia-idade, zelador de banheiros públicos em Tokyo. A câmera nos aproxima de sua rotina, o que nos traz certa intimidade como espectador: acordamos com ele, tomamos café, aguamos as plantas, nos preparamos para ir ao trabalho e descansamos ao fim do dia. Não sabemos exatamente o que ele pensa ou sente, mas vivemos e acompanhamos seu cotidiano. Hirayama executa seu trabalho com muita dedicação, cuidado e de forma minuciosa. No almoço, dirige-se sempre a um parque arborizado e, com sua câmera analógica, fotografa a copa das árvores, uma cena que se repete diariamente como parte de seu dia. É um momento de contemplação, uma admiração do simples, como se as árvores (e os pequenos detalhes ao redor) tornassem o “dia perfeito”. O fim de semana também tem seus rituais: lavar as roupas, revelar fotos e depois selecioná-las, ir à loja de livros e ir ao bar a noite. Os dias recomeçam, e a rotina se repete.

O personagem, em seu silêncio constante, é atravessado pelos outros personagens, como se fosse falado através deles. É como se deixasse de ser protagonista por um instante ou estivesse imerso em outra perspectiva em relação aos outros e o mundo ao seu redor. Através dele o drama e a loucura urbana de Tokyo se apresenta: pessoas desconhecidas, barulhos, cenas diversas etc. Hirayama, embora esteja quase sempre só, não transparece solidão. Ele está sempre compartilhando sua vida, seu tempo e seus hobbies com outros rostos anônimos que cruzam seu caminho. Sua linguagem é sempre muito gestual e expressiva!
O filme se desenrola em meio a repetição de sua rotina, mas é aí que algo surge. A chegada de sua sobrinha, Niko (Arisa Nakano), que perturba levemente a ordem, rompe com a rotina, e com isso, nos revela algo de um passado. A jovem se mostra curiosa e interessada na simplicidade da vida do tio. Durante um passeio, ao andarem de bicicleta, repetem juntos: “Agora é agora, depois é depois”. A repetição transforma-se em mantra, cantado pelos dois, mas permite pela brincadeira descobrir o tempo da espera. Ao fim do dia, ao retornarem para casa, o reencontro com a irmã de Hirayama, mãe de Niko, deixa entrever uma história anterior, uma dor contida. O choro silencioso do personagem nos mostra que algo nele se abre, há um vislumbre de outros mundos que o personagem talvez tenha habitado. A rotina se segue. O colega de trabalho não comparece, e todos os banheiros ficam sob responsabilidade do nosso esmero zelador. Podemos vê-lo, pela primeira vez, estressado, nervoso, falando com raiva e firmeza. Um novo dia se inicia. Os dias parecem ser perfeitos, mas a vida não é...
A vida do personagem parece expressar uma vida mantida por um controle metódico no presente que não se sustenta quando o passado o reencontra. De todo modo, há disciplina em sua rotina: cada gesto é feito com presença, entrega e atenção ao instante (“agora é agora”). Acompanhar a repetição do seu cotidiano nos faz aguçar a sensibilidade, nos atentar ao que é minucioso, nos convida a apreciar os detalhes, fazendo refletir sobre a vida num outro ângulo (talvez o jogo de câmera do filme no permita isso). O personagem parece encontrar algum sentido nas suas tarefas, nessa repetição metódica do fazer. Uma forma de organizar-se internamente a partir do externo.
O filme parece jogar, o tempo todo, com a questão da permanência e impermanência. Marca para o espectador o tempo do instante, a ideia de que o belo é passageiro, que há possibilidade de se encantar com o ordinário, apostar que há fragmentos de humor e beleza na cidade, no cotidiano e na vida em si. Apresenta a ideia da rotina, mas também a sua ruptura, tanto em termos psíquicos quanto do mundo externo, da vida lá fora. Quando a repetição da rotina se interrompe algo se instaura, assusta, mas também permite algo do desejo (Hirayama se revela divertido, desejante, bonito e sorridente). Algo se desabrocha, a linguagem se amplia.
Como diria Matilde Campillho: “a arte não salva o mundo, mas salva o minuto”. No filme, a vida do personagem é vista sob uma tonalidade artística, um encantamento que nos permite pensar que, embora a vida não seja perfeita, talvez os dias possam ser.
Por Vitor Ramos
CRP 06.149076
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